[#7] EQUILÍBRIO ÁCIDO-BASE: Como o sistema renal regula o pH? (PARTE 1)

Este post é a transcrição da videoaula publicada em nosso canal do YouTube "[#7] EQUILÍBRIO ÁCIDO-BASE: Como o sistema renal regula o pH? (PARTE 1)".

TRANSCRIÇÕESEQUILÍBRIO ÁCIDO-BASE

Mirian Kurauti

2/19/202512 min read

No vídeo anterior, a gente explicou como o sistema respiratório participa da regulação do pH do líquido extracelular. Nesse vídeo, a gente vai explicar como o sistema renal participa da regulação do pH desse líquido.

E aí pessoal, tudo bem com vocês?

Eu sou Mirian Kurauti aqui do canal MK Fisiologia e antes de mais nada, eu queria avisar que esse vídeo faz parte de uma playlist completa sobre equilíbrio ácido-base. O link dessa playlist tá aqui no card (ou aqui), na descrição do vídeo e no comentário fixado desse vídeo. Então, se você ainda não assistiu, vai lá assistir e depois você continua assistindo esse vídeo, beleza? Mas se você já assistiu os vídeos anteriores dessa playlist, bora para o vídeo!

Como vimos, o equilíbrio ácido-base é o equilíbrio entre o ganho e a perda de ácidos e bases que acontecem diariamente no organismo. Então, se o ganho e a perda forem iguais, a quantidade de ácidos e bases será mantida quase constante, ou melhor, em homeostase.

Uma forma de medir a quantidade de ácidos e bases em um meio é através da medida da concentração do íon hidrogênio (H+), que, como vimos, pode ser representada usando aquela formosa escala que a gente chama de pH, que nada mais é do que -log da concentração de H+.

Em condições normais ou fisiológicas, o pH do líquido extracelular, ou melhor, do sangue arterial, é mantido entre 7,35 e 7,45 graças a três mecanismos de regulação do pH:

  1. mecanismos de regulação dos sistemas tampão extracelulares e intracelulares;

  2. mecanismos de regulação do sistema respiratório;

  3. e mecanismos de regulação do sistema renal.

Bom, considerando uma pessoa saudável com uma dieta mais ocidental, o resultado final do ganho e da perda de ácidos e bases a cada dia é um ganho líquido de ácidos, ou seja, a gente ganha mais ácidos do que bases e o pH do líquido extracelular poderia ir diminuindo a cada dia caso não houvesse esses mecanismos de regulação do pH.

Mas uma pergunta que fica é: de onde vem esse ganho líquido de ácidos que acontece diariamente no organismo?

A cada dia, o metabolismo das células produz em média 15.000 mmol de gás carbônico, um ácido volátil, pois, lembre-se, esse gás reage com água formando ácido carbônico, que pode liberar os íons bicarbonato e H+.

Além disso, a cada dia, as células também produzem em média mais 40 mmol de outros ácidos não voláteis, chamados de ácidos fixos, os quais também podem liberar H+.

Toda essa produção diária de ácidos ainda pode ser somada a uma média de 20 mmol de outros ácidos fixos vindos da nossa dieta, os quais também podem liberar H+.

E, por fim, mas não menos importante, a cada dia a gente ainda perde em média 10 mmol de bases nas fezes, principalmente o bicarbonato, e uma perda de 10 mmol de bases representa um ganho de 10 mmol de H+.

Somando todos esses ganhos diários de H+, a gente teria um ganho médio de 15070 mmol de H+ por dia, e isso poderia causar grandes alterações do pH. Poderia, mas isso não acontece porque essas alterações podem ser minimizadas pelos sistemas tampão, principalmente o sistema tampão bicarbonato.

Porém, lembre-se que esses sistemas não eliminam o excesso de ácido adicionado no organismo a cada dia. E aí, pra eliminar o ganho de ácidos voláteis, ou melhor, pra eliminar os 15.000 mmol de gás carbônico produzidos todos os dias, a gente tem, claro, o sistema respiratório que a gente falou no vídeo anterior.

Porém, mesmo eliminando todo o gás carbônico produzido diariamente, ainda é preciso eliminar 70 mmol de H+ que são adicionados todos os dias no organismo. E adivinha quem é que vai eliminar esse ganho de H+ vindo do ganho de ácidos fixos?

Sim, o sistema renal.

Mas a pergunta que fica é: como exatamente o sistema renal elimina esse ganho diário de H+?

Bom, primeiramente, lembre-se que esse ganho de 70 mmol de H+ equivale também a uma perda de 70 mmol de bicarbonato, ou seja, diariamente o líquido extracelular ganha H+ e perde bicarbonato. Portanto, os rins precisam regenerar esses 70 mmol de bicarbonato que são perdidos e eliminar 70 mmol de H+ que são adicionados no líquido extracelular a cada dia.

O problema é que diariamente os rins filtram 180 litros de líquido extracelular contendo uma concentração de 24 milimolar (mM) ou mmol por litro de bicarbonato. E isso significa que, por dia, 4.320 mmol de bicarbonato acabam sendo filtrados pelos rins.

Portanto, a cada dia, os rins precisam reabsorver esses 4.320 mmol de bicarbonato filtrados, e ainda dar um jeito de recuperar mais 70 mmol de bicarbonato que são perdidos diariamente devido ao ganho de ácidos fixos.

Então, aqui a gente pode fazer duas perguntas:

Primeiro, como que os rins reabsorvem praticamente todo o bicarbonato filtrado?

E segundo, como que os rins recuperam mais 70 mmol de bicarbonato a cada dia?

Pra responder a primeira pergunta, a gente precisa lembrar dos mecanismos de reabsorção e secreção tubular que você provavelmente já deve ter visto quando estudou a fisiologia do sistema renal.

Uma observação que a gente pode fazer aqui é que na fisiologia do sistema renal a gente acaba falando de forma bem geral sobre os mecanismos de reabsorção e secreção de várias coisas diferentes. Mas aqui nesse vídeo, a gente pode focar mais nos mecanismos de reabsorção de bicarbonato que, lembre-se, tá sempre associado ao mecanismo de secreção de H+.

O principal mecanismo de reabsorção de bicarbonato e secreção de H+ acontece nas células epiteliais do túbulo proximal dos néfrons onde o gás carbônico reage com a água pra formar ácido carbônico, uma reação que é muito lenta, mas graças à enzima anidrase carbônica essa reação pode acontecer rapidamente liberando bicarbonato e H+.

O H+ deixa a célula pela membrana apical em direção ao lúmen do túbulo através de proteínas transportadoras específicas, uma que realiza transporte ativo secundário acoplado ao transporte de sódio, ou seja, o H+ é secretado enquanto o sódio é reabsorvido, e outra proteína transportadora que realiza transporte ativo primário, uma ATPase ou bomba de hidrogênio (H+).

Uma vez no lúmen, o H+ pode reagir com o bicarbonato que foi filtrado, graças à enzima anidrase carbônica, formando ácido carbônico o qual pode formar água e gás carbônico, que pode então ser transportado passivamente através da membrana apical, sendo assim reabsorvido. E esse gás carbônico pode então ser usado pra formar mais H+ e bicarbonato.

O bicarbonato deixa a célula pela membrana basolateral em direção ao interstício através de uma proteína transportadora específica que realiza um transporte ativo secundário acoplado ao transporte de sódio, participando assim tanto da reabsorção de bicarbonato como da reabsorção de sódio.

Esse é o principal mecanismo de reabsorção de bicarbonato e secreção de H+ no túbulo proximal, que tem a capacidade de reabsorver cerca de 80% de todo bicarbonato filtrado, e no ramo ascendente da alça de Henle, que tem a capacidade de reabsorver cerca de 10% do bicarbonato.

Os outros 10% de bicarbonato pode ser reabsorvido em um tipo especial de célula presente nos túbulos distais e ductos coletores dos néfrons, a célula intercalada tipo A ou alfa.

Nessas células o H+ é secretado principalmente por proteínas que realizam transporte ativo primário, bombas de hidrogênio (H+) e bombas de hidrogênio/potássio (H+/K+) presentes na membrana apical, enquanto o bicarbonato é reabsorvido por uma proteína transportadora que realiza o transporte de bicarbonato e cloreto, um trocador de ânions presente na membrana basolateral dessas células.

Então, até aqui a gente viu a reabsorção do bicarbonato filtrado, ou seja, os rins só devolveram o bicarbonato que ele mesmo pegou do líquido extracelular. Os rins ainda precisam restaurar 70 mmol de bicarbonato perdido diariamente.

O problema é que pra restaurar 70 mmol de bicarbonato, é preciso excretar 70 mmol de H+, e se todo esse H+ fosse excretado livre isso não ia dar certo, porque considerando que a gente produz em média 1 litro e meio de urina por dia, a gente teria que eliminar uma urina com uma concentração de 47 milimolar (mM) ou 0,047 M de H+, ou seja, uma concentração de H+ que deixaria a urina com um pH de 1,3, um pH mais baixo que o pH do suco gástrico só pra você ter uma noção. Imagina isso saindo pela sua uretra todo dia?

Além disso, eliminar uma urina tão ácida assim é impossível porque os túbulos distais e ductos coletores, que são os segmentos com a maior capacidade de concentrar H+ na urina, não consegue concentrar a ponto de a urina sair com um pH de 1,3. Na verdade, mesmo quando os rins tão trabalhando na sua capacidade máxima de concentração de H+, o pH da urina sai em torno de 4,4.

-Tá, professora, mas então como que faz pra excretar aqueles 70 mmol de H+?

Excretar 70 mmol de H+ livre, leve e solto não dá, mas e se a gente não deixar todo esse H+ livre na urina?

Pois é, a maior parte desse H+ que precisa ser excretado diariamente não é excretado na sua forma livre e sim na sua forma ligada, neutralizada. E adivinha quem é que pode neutralizar esse H+?

Sim, os sistemas tampão que são filtrados pelos próprios rins. Só que aqui não vai ser o sistema tampão bicarbonato que vai neutralizar o H+ da urina, até porque praticamente todo o bicarbonato filtrado é reabsorvido e não fica na urina. Aqui quem vai tamponar o pH da urina são outros sistemas tampão.

Lembra que no sangue a gente tinha o sistema tampão proteínas como o segundo sistema tampão mais importante pra tamponar o pH do sangue?

Aqui nos túbulos renais, a gente não vai ter o sistema tampão proteínas, até porque as proteínas não são filtradas nos glomérulos. Mas o terceiro sistema tampão mais importante do sangue é filtrado nos glomérulos, e acaba se tornando o sistema tampão mais importante na urina. E sabe quem é esse sistema?

O sistema tampão fosfato (HPO42-).

Assim, o H+ secretado, ao invés de ser tamponado pelo bicarbonato que formaria no final gás carbônico e água os quais seriam reabsorvidos, pode ser tamponado principalmente pelo fosfato, formando o ácido fosfórico, um ácido titulável responsável pela acidez titulável da urina, isto é, uma acidez que pode ser titulada quando se adiciona uma base forte na urina.

E uma vez formado, esse ácido titulável pode então ser excretado na urina.

Ah e não é só o fosfato que pode formar ácido titulável e neutralizar o H+ secretado. O urato e a creatinina também podem atuar como tampões e neutralizar o H+ secretado, formando outros ácidos tituláveis. Porém, a capacidade tamponante desses tampões se torna mais importante quando o organismo tá em acidose e precisa excretar maiores quantidade de H+, e o pH da urina atinge seus valores mais baixos em torno de 4,4.

Mas aqui, como a gente tá falando de um organismo saudável, que só precisa excretar em torno de 70 mmol de H+ por dia, o tampão fosfato é o mais importante pra neutralizar parte desses 70 mmol de H+ que precisa ser excretado por dia.

Reparem então que nesse caso, quando um H+ é secretado, não volta gás carbônico e água pra formar bicarbonato, isso significa que aqui o bicarbonato não tá sendo reabsorvido, na verdade, nesse caso, um novo bicarbonato tá sendo formado e adicionado ao líquido extracelular, pra tentar restaurar aqueles 70 mmol de bicarbonato perdidos diariamente.

O problema é que esse mecanismo de formação de bicarbonato que acontece graças a formação de ácidos tituláveis na urina não consegue dar conta de formar 70 mmol de bicarbonato por dia, e um outro mecanismo de formação de bicarbonato entra em cena.

Esse outro mecanismo de formação de bicarbonato acontece principalmente nas células epiteliais do túbulo proximal e depende da excreção da amônia (NH3), ou melhor, do íon amônio (NH4+) que pode ajudar a excretar H+ na sua forma neutralizada, na urina.

A amônia e o íon amônio são produzidos durante o metabolismo de proteínas em vários tecidos, especialmente no tecido muscular e o tecido hepático, ou seja, no fígado. Mas, como são tóxicos pro organismo, o fígado pode converter a amônia e o íon amônio em ureia, só que nessa conversão pra cada íon amônio um bicarbonato é consumido.

E aí, pra não ficar consumindo muito bicarbonato, o fígado pode converter o íon amônio em aminoácidos, como a glutamina.

A glutamina pode circular e chegar até os rins, onde principalmente nas células epiteliais dos túbulos proximais dos néfrons ela pode ser metabolizada, e o seu metabolismo acaba gerando 2 íons amônios e 2 bicarbonatos. Enquanto o bicarbonato é transportado através da membrana basolateral em direção ao interstício, o amônio é transportado através da membrana apical em direção ao lúmen do túbulo através de dois mecanismos principais.

Primeiro, o amônio pode ocupar o lugar do H+ no trocador de Na+ H+, e assim ser secretado diretamente no lúmen, ou ele pode formar H+ e amônia (NH3), e aí o H+ pode ser secretado pelo trocador Na+ H+, e a amônia pode se difundir através da membrana ou através de proteínas canais específicas presentes na membrana apical, sendo assim secretado no lúmen do túbulo. No lúmen, a amônia pode se combinar novamente com H+ pra formar o íon amônio que pode então seguir pelos túbulos renais.

Tudo isso acontece principalmente no túbulo proximal, mas conforme o íon amônio e também a amônia seguem pelos túbulos renais, eles podem ser reabsorvidos na alça de Henle e secretados novamente no ducto coletor.

A reabsorção da amônia e, principalmente, do íon amônio acontece principalmente no ramo ascendente espesso da alça de Henle através de proteínas transportadoras específicas, e essa reabsorção acaba concentrando a o íon amônio e a amônia no interstício da medula renal, gerando assim um gradiente de concentração que favorece a secreção do íon amônio e da amônia nos ductos coletores, uma secreção que acontece através de proteínas transportadoras específicas.

Pra simplificar um pouco, a gente não vai mostrar todas essas proteínas transportadoras que participam da reabsorção e secreção do íon amônio e da amônia, mas se você precisar desse detalhe você pode consultar os livros que eu vou deixar na descrição desse vídeo.

Aqui, o importante é saber que os ductos coletores são mais impermeáveis tanto aos ácidos tituláveis, quanto ao íon amônio, os quais não podem ser mais reabsorvidos nesses ductos. Por isso, essa parte final dos néfrons tem a capacidade de concentrar mais os ácidos tituláveis e o íon amônio pros rins serem capazes de excretar os 70 mmol de H+ que são adicionados no organismo a cada dia.

-Tá, professora, mas e se eu tiver uma acidose ou uma alcalose, e tiver que excretar uma quantidade maior ou menor que 70 mmol de H+ por dia, como que os rins regulam essa excreção?

Sobre essa regulação a gente fala no próximo vídeo, não perca!

Bom, então resumindo tudo o que a gente viu nesse vídeo, lembre-se que:

  • Em condições normais, fisiológicas, os rins reabsorvem praticamente todo o bicarbonato filtrado, e ainda formam mais bicarbonato pra repor o que geralmente é perdido diariamente.

  • E essa formação de novo bicarbonato depende da excreção de H+ na forma de ácidos tituláveis, como o ácido fosfórico, e na forma de íon amônio (NH4+).

Bom, a gente vai ficando por aqui, então não esquece de dar aquele apoio pra gente continuar descomplicando a fisiologia. Curte, comenta, compartilha, e considere se tornar membro do canal. É só clicar no botão seja membro pra conferir os benefícios que a gente oferece em cada nível de assinatura, beleza?

E como sempre, qualquer dúvida pode deixar aí nos comentários que a gente tenta responder.

A gente se vê num próximo vídeo. Abraço!

Sobre a autora

Mirian Ayumi Kurauti é apaixonada pela fisiologia humana, com uma trajetória acadêmica admirável. Ela se formou em Biomedicina pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), fez mestrado e doutorado em Biologia Funcional e Molecular com ênfase em Fisiologia na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), e ainda atuou como pesquisadora de pós-doutorado na mesma instituição. Além disso, já lecionou fisiologia humana na Universidade Estadual de Maringá (UEM) e biologia celular na UEL. A sua última experiência como professora de fisiologia humana foi na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Fundadora da MK Educação Digital Ltda (MK Fisiologia), atualmente, Mirian é a mente criativa por trás de todos os conteúdos publicados nas redes sociais da empresa.

Apaixonada pela docência, Mirian adora dar aulas de fisiologia humana, mas de um jeito mais descontraído e se diverte muito ensinando. Ela está sempre buscando aprender algo novo não só sobre fisiologia, mas sobre qualquer coisa sobre a vida, o universo e tudo mais. Por isso, é uma consumidora compulsiva de conteúdos de divulgadores científicos. Nas horas vagas, você pode encontrá-la na piscina, treinando e participando de competições de natação. Para Mirian, a vida só tem graça, se ela tiver desafios a serem superados. Hoje, o seu maior desafio é ajudar o maior número de estudantes a entender de verdade a fisiologia humana, principalmente através de suas videoaulas publicadas no canal do YouTube MK Fisiologia.

Foto da autora do post Mirian Ayumi Kurauti criadora do MK Fisiologia
Foto da autora do post Mirian Ayumi Kurauti criadora do MK Fisiologia